Gisela João: “Nem sei muito bem o que é o fado. É um sentimento”
Written by Camões Radio on April 12, 2021
Cantora regressa com “AuRora”, um álbum que testa os limites do idioma.
Ao terceiro álbum, Gisela João entrou finalmente num estúdio. E, sob a produção do americano Michael League, ligado a muitos sons, o jazz e as músicas do Mundo à cabeça, registou o conjunto de canções mais ousado e difícil de catalogar do seu percurso. Um conjunto em que o fado é banhado em eletrónica e texturas gasosas. A cantora e agora também compositora quer que “AuRora” seja escutado como uma centelha de esperança no meio do negrume. Tudo isto será fado?
“AuRora” é um disco pré-pandemia, certo?
Acabou de ser gravado a 31 de dezembro de 2019 às 10 da noite. Foi misturado em janeiro [de 2020], depois viajei para o Brasil para filmar os videoclips no início de março. Aterro em Lisboa no dia 16 com tudo pronto e dois dias depois foi declarado a quarentena.
Há um tom geral no disco de não se querer perturbar o silêncio para lá do estritamente necessário. Concorda?
Sou um bocado obcecada com o silêncio na música. A música, para mim, não pode ser barulho, nem um meio para eu trabalhar o ego. Somos um veículo para que aquela música e aquela letra tenham a vida que precisam. E para isso é preciso muita contenção. Consigo dar notas altas, mas não tenho de passar uma música inteira nas notas altas. O silêncio é o lugar que temos para pensar nas coisas, para tomar decisões.
Descreva um dia típico de gravação de “AuRora”.
Não gosto de gravar de dia. É sempre a partir das 6, 7 da tarde. Foi a primeira vez que gravei em estúdio – os outros foram em casa, onde se montava um estúdio móvel. Cozinhei algo em cada dia de estúdio para que as pessoas se sentissem mais em casa, porque acredito que à volta da comida nós ficamos mais vulneráveis, damo-nos mais. Ouve-se as músicas e os rascunhos. Leio um poema em voz alta e explico o que sinto na interpretação daquele tema. Depois pega-se nos instrumentos e escolhem-se as tonalidades mais confortáveis para mim. Por volta das 2, 3, 4 da manhã, vou descansar.
Quando convidou Michael League para produzir, o que é que lhe pediu?
Na minha cabeça ouvia os sons eletrónicos que achava que fazia sentido juntar ao fado. Fui muito clara: disse-lhe que queria essa componente, mas que não podia nunca “comer” o fado. Na verdade, nem sei muito bem o que é o fado. É um sentimento, um feeling.
Ele escreveu que “AuRora” leva o género fado aos seus limites. O que há para lá desses limites?
O risco de se fazer demais. Este género é tão simples e ao mesmo tempo tão grande que basta exagerar um pouquinho que já perde.
Por que razão só agora se aventurou na escrita de canções?
Há tanta gente a escrever tão bem que nunca senti necessidade. Ser apenas intérprete não é menos do que ser compositor. O papel do intérprete é muito altruísta porque dá voz ao outro. Além disso, achava que não sabia fazer música. Não sei escrever nem ler uma pauta. Mas o Justin [Stanton, pianista, companheiro de Gisela João, aliado de Michael League na banda Snarky Puppy] disse-me, “não, tu sabes fazer música. A partir de agora, vais gravar tudo quando andas por aí a cantar”.
O que aprendeu com “AuRora”?
Aprendi a contenção. Foi altamente empoderador. De repente, estar a trabalhar com pessoas a quem dou todos os créditos e mais alguns, por quem tenho muito respeito musical e intelectual, que falam para mim de igual para igual e que me fazem sentir que não sou apenas uma intérprete. E que me ouvem com ouvidos de ouvir. O que o “AuRora” me deu foi o sentir-me mais capaz.
Fonte: JN